O ataque dos gafanhotos no Rio Grande do Norte
* Edmilson Lopes
Os estudantes da rede pública estadual do Rio Grande do Norte
estão sem aulas há mais de dois meses. Excluídos do único espaço
público que ainda lhes resta em uma sociedade na qual a sociabilidade
juvenil legítima é aquela que se desenvolve nos shoppings centers, esses jovens
são tomados pelo desânimo e a desesperança. Falar de vestibular em
alguma universidade pública, as melhores e mais concorridas, soa, para
eles, quase como uma agressão. Nesses dias, conversando com um rapaz
de 17 anos, morador do bairro Jardim Progresso, na Zona Norte de Natal,
fui informado de que o mesmo está concluindo o ensino médio sem ter
tido, há mais de ano, aulas de algumas disciplinas básicas.
Simplesmente porque faltam professores regulares de disciplinas como
matemática,química e física em sua escola. "Como é que vou concorrer com o cara
que estuda em colégio particular e que tem aula dessas matérias?",
questionou-me.
Desnorteado, fui conversar com uma professora de matemática. Atuando na
rede pública há duas décadas, tendo feito mestrado em ensino de
ciências e ganho um prêmio nacional por ter criado um projeto de
ensino de sua matéria na qual as atividades lúdicas são mobilizadas para tornar mais
fácil a aprendizagem de geometria, a professora, revoltada, mostrou-me
o seu contracheque. R$ 1.200,00, esse o valor do seus salário na rede
pública estadual. Para garantir o pagamento de suas despesas mensais,
ela ministra aulas em uma faculdade particular, na qual recebe R$
550,00, e em uma prefeitura da Grande Natal, da qual recebe mais R$
1.300,00. Adora ensinar, e, coisa rara nestes dias, fala com carinho
de seus alunos da rede pública. Já lecionou em um colégio de classe
média, onde ganhava o dobro de tudo que hoje recebe trabalhando para o
setor público, mas preferiu sair. "É que eu me sinto comprometida com eles",
justificou, não sem uma ponta de constrangimento, sua escolha.
Questionei-lhe sobre o mestrado: "o curso de pós não implica em um
aumento no seu salário?". Ela riu com superioridade da minha
ingenuidade e arrematou: "olha, tem gente que demora dez anos pra ter a
pós-graduação incorporada no salário. E não tem retroativo, não. Tá
pensando que isso aqui é Universidade Federal, é?". Por sua indicação,
fui conversar com uma ex-professora de sociologia da rede pública. Esta
concluiu mestrado (há doze anos) e doutorado (há seis anos). Em
dezembro passado, quando decidiu abandonar a rede pública de ensino,
ainda não tinha conseguido fazer com os seus títulos fossem reconhecidos pelo
Governo do Estado.
A situação dos médicos não é muito melhor do que aquela dos
professores. Na mesma condição estão outras categorias profissionais
que têm como "clientes" os mais pobres e seus filhos.
As greves dos servidores parecem sem saída. O Governo do Estado nega
qualquer aumento salarial apontado que os gastos com servidores já se
encontraria nos limites estabelecidos pela Lei de Reponsabilidade
Fiscal. Para tomar a iniciativa política, nesta semana, o Governo
divulgou dados de uma auditoria sobre os "supersalários" de alguns
servidores públicos. Mais do que arrefecer os ânimos, a manobra foi
como jogar gasolina na fogueira. Acirrou mais ainda a revolta dos que
trabalham de verdade no serviço público.
Uma das revelações da auditoria é a de que o merecedor do maior salário
no Rio Grande do Norte é um auditor fiscal aposentado que recebe
inacreditáveis R$ 62.916,00 por mês. Para alcançar esse total, há um
complemento que é uma amostra do cinismo com que se constrói
coletivamente a destruição dos bens públicos no Brasil: nada menos que
R$ 19.468,00 desse supersalário resultam da incorporação de uma tal de
"gratificação prêmio produtividade inativo". Nem o mais corrosivo dos
humoristas pensaria em um título melhor para um ataque aos cofres
públicos. O holerite do auditor é ainda vitaminado por um "adicional
por tempo de serviço inativo" de R$ 6.180,00. A mensagem não poderia ser
mais clara: no Rio Grande do Norte, a inatividade de um auditor fiscal
vale mais do que a atividade de três professores ou dois médicos.
Na edição deste sábado do Novo Jornal, mais um dado da auditoria: um
vigia, funcionário da Fundac, tem um salário mensal de R$ 21.000,69.
Como a Fundac supervisiona os CEDUCs (as "febems" daqui), o Rio Grande
do Norte emite outra mensagem exemplar: quem monitora os infratores deve receber
proventos vinte vezes maior do que aqueles que tratam de evitar que,
através da educação, jovens cheguem em uma dessas unidades.
O ataque dos gafanhotos ao erário público destrói a esperança de
jovens e adolescentes pobres e alimenta as estatísticas da morte no
estado. Nos primeiros cinco meses deste ano, em Mossoró, uma cidade de 280 mil
habitantes, contabilizou-se nada menos que 100 homicídios. 80% dessas
mortes eram de jovens. A maioria delas poderia ser evitada, caso o
policiamento da cidade não tivesse sido atingido brutalmente pela
suspensão do aluguel de carros. Medida tomada em nome da contenção de
gastos, diga-se de passagem.
O ataque dos gafanhotos só é possível porque há quem o alimente em
algumas esferas do Estado. Descoberta a praga, o Ministério Público
Estadual prometeu uma investigação. Não se poderia esperar outra
medida. Afinal de contas, um promotor público estadual, no Rio Grande
do Norte, recebe, em média, um salário vinte vezes maior do aquele de um
professor. Entretanto, há quem duvide sobre o êxito dessa investigação.
Não sem razão, pois, desentocar os atores que, por trás da cena,
criaram deram feições legais aos "supersalários" não é tarefa das mais
fáceis.
No Jardim Progresso, na Zona Norte de Natal, a destruição do Estado, em
parte produzida pelos gafanhotos dos "supersalários", mina os sonhos e
estreita os horizontes de jovens e adolescentes. Quem se importa?
* Texto enviado por Ruston Liberato, de autoria de Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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